A cidade e o transporte público: um olhar crítico sobre os acontecimentos recentes em Feira de Santana (BA)

Ônibus em Feira de Santana por Paulomedford

Ônibus em Feira de Santana por Paulomedford

Por UJC/NÚCLEO UEFS

Um dilema enfrentado por toda a população brasileira, visto a forma como se estruturam as cidades, e especialmente pelas esquerdas desde as jornadas de junho de 2013 com maior tensão é a questão do transporte público. Em geral, seguem o mesmo padrão: concessões públicas, com altos valores, ônibus abarrotados e serviços de baixíssima qualidade, que possuem inúmeras implicações na vida da classe trabalhadora. Em Feira de Santana, maior cidade do interior baiano e um entroncamento rodoviário, não é diferente, na realidade chega a ser mais alarmante.

Não é como se as Jornadas de 2013 e a própria questão do transporte não tenham peso na cidade; à época, inclusive, a passagem foi reduzida de R$2,50 para R$2,35 ¹ e, historicamente, a população costuma realizar o fechamento dos terminais e garagens, prisão dos ônibus em áreas estratégicas e outras ações que parem a cidade e pressionem pela melhoria ou redução do custo do transporte. Mas mesmo com toda a movimentação da população, por vezes espontaneístas, a problemática persiste, com a leniência da prefeitura, que não fiscaliza, e o lucro dos donos das empresas, que segue crescente às custas da exploração dos trabalhadores que dependem desse meio de locomoção.

Durante a pandemia, a questão se agravou de forma assustadora, tendo em vista que as empresas Rosa e São João reduziram suas frotas – de 220 veículos, atualmente rodam 130 (com redução de 30 linhas aos fins de semana) ². A cidade também nunca realizou um lockdown de fato, o que certamente acarretou em uma maior contaminação da população, a exemplo do primeiro caso de propagação local do vírus na Bahia (o nono do país) ter ocorrido em Feira de Santana, através de uma empregada doméstica que contraiu a partir da sua patroa, recém-chegada de uma viagem à Itália ³.

Desde o início da pandemia, os trabalhadores foram largados à própria sorte para sobreviver, e continuam sendo empurrados diariamente para os grandes focos de contaminação que são as aglomerações dos ônibus. Os veículos possuem pouca ou nenhuma ventilação, e são verdadeiras máquinas de extermínio, onde o alvo é sempre o mesmo: a população trabalhadora, pobre, negra e periférica.

Nas últimas semanas, o caos na mobilidade urbana tomou proporções ainda maiores: dia 23/10, a empresa Rosa retirou de circulação (abandonou) 4 linhas que interligam a cidade à zona rural, tornando a discrepância entre a zona urbana e o campo mais absurda e a vida dos trabalhadores do campo e da cidade (especialmente feirantes) um verdadeiro pesadelo. As formas de transporte alternativo, além de serem mais custosas ao bolso da população, não são suficientes perante o fluxo intenso de pessoas na cidade.

Em agosto deste ano, as empresas ainda ameaçaram abandonar o sistema de transporte caso um reajuste para R$6,90 no valor da passagem não fosse aprovado, que vinha sob a pecha de “cobrir” os custos do reajuste do salário dos rodoviários . É importante pontuar que a cidade já possui a passagem mais cara do que 7 capitais do Nordeste, no valor de R$4,15 – chegando a R$4,65 em pontos mais distantes do centro -, e se distancia da capital baiana, Salvador, por apenas R$0,05 centavos , o que significa dizer que o lucro vem sendo completamente garantido e levado em boa parte para fora do estado, visto que uma das empresas pertence ao grupo São João, da cidade de Vontorantim (SP), enquanto a empresa Rosa é de Feira de Santana.

Esses ataques, que visam desesperadamente o lucro dos empresários donos das empresas, não foram aceitos de forma passiva: os rodoviários, que estavam sem receber salário, paralisaram suas atividades entre os dias 23 e 25, e no dia 27/10 os moradores da zona rural realizaram uma passeata nas principais avenidas da cidade até a prefeitura, e ainda fizeram o trancamento da garagem dos ônibus por 24 horas, impedindo que qualquer veículo circulasse até o restabelecimento de toda a frota nas ruas. Para tanto, foi formada uma corrente humana que só se encerrou após o poder público municipal, através de artifícios jurídicos, fazer uso da milícia armada do Estado e acabar com a ação popular – o que, no entanto, não foi suficiente para retomar a atividade dos minguados veículos restantes de imediato .

No escalar da crise, instaurada desde antes da pandemia, somente no dia 29/10 e após a mobilização já citada dos trabalhadores rodoviários e rurais, a prefeitura resolveu decretar intervenção parcial na operação do sistema público de transporte coletivo e na Via Feira (Associação das Empresas de Transporte Coletivo de Feira de Santana) para manter o funcionamento do transporte na cidade. Este fato exemplifica mais uma vez como a iniciativa privada não tem qualquer compromisso com os trabalhadores, e muito menos o poder público municipal reacionário; este último que somente reagiu frente à mobilização e, sobretudo, para assegurar o lucro e sobrelucro do comércio e do grande empresariado local, que precisam que os moradores cheguem aos seus locais de trabalho para serem explorados e fornecerem lucro ao patronato, efetivando sua mais-valia.
As problemáticas são muitas, porém destacam-se os pontos de ônibus distantes, a falta de conservação das vias utilizadas, itinerários que não cumprem o horário predefinido, rotas que não respeitam o tempo do trabalhador, diminuição das frotas, falta de segurança tanto na espera do transporte quanto na realização da viagem e preços que não condizem com a realidade dos serviços prestados. Enquanto isso, no dia-a-dia sofre a população feirense em decorrência da péssima gestão do prefeito Colbert Martins (MDB).

Não é possível pensar as cidades no Brasil sem considerar a brutal necessidade de melhoria no sistema de transporte público, o valor pago pelos trabalhadores, que poderia ser reduzido e custeado parcial ou até mesmo totalmente pelo Estado e as empresas (a quem os trabalhadores estão a serviço vendendo sua força de trabalho, extraída desde o momento em que saímos de casa até o trabalho), o aumento das frotas, a melhoria das vias e a integração de fato entre as zonas periféricas e o centro da cidade, ou até mesmo dos bairros entre si, coisa que não acontece em Feira de Santana – bairros vizinhos não são interligados, demandando integração no terminal central da cidade.

O transporte deve servir para além de levar as massas aos seus empregos, mas servir ao lazer e quaisquer outras atividades que se queira realizar e necessite deslocamento, o que é totalmente inviável quando o transporte atende somente a dinâmica de mercado e não funciona aos fins de semana, por exemplo. É preciso possibilitar aos seres humanos se desenvolverem em suas plenitudes, o que não é possível com a limitação de seus direitos, como o direito à cidade, ao lazer e a alimentação de qualidade, dada a existência dos desertos alimentares em boa parte das cidades brasileiras, para além da carestia e da fome.

É perceptível, especialmente através dos elementos já citados, que não existe qualquer resquício ou tentativa de implementação desses direitos em Feira de Santana. Na realidade, desde o início do domínio sem fim do ex-prefeito José Ronaldo (DEM) e seus lacaios do poder público municipal, a cidade é projetada, através de suas vias, viadutos e ruas, para ser construída e moldada para os carros – para quem os tem (normalmente uma parcela da classe média e alta) – e para aprofundar as contradições do capital na realidade e a sua reprodução, ignorando e desdenhando do povo trabalhador, que dá vida e movimento à territorialidade.

Para além das demandas mais urgentes de resolver as problemáticas de transporte das cidades e do campo no Brasil, é preciso construir a autogestão dos trabalhadores, nas fábricas, nas empresas de ônibus e em todas as modalidades de transportes coletivos, e ir além, construindo um governo autogestionado pela e para a classe trabalhadora. Nossas necessidades de classe só podem ser compreendidas, geridas e solucionadas por nós mesmos; por isso, mais do que nunca, urge a defesa permanente da revolução brasileira, para que todo o poder pertença ao povo, que construirá uma sociedade emancipada, que nos guie ao fim da exploração do homem pelo homem.

Referências

¹ DA SILVA, Antonio Rosevaldo Ferreira. Tarifa Zero é Possível? 2013. Disponível em: <http://files-server.antp.org.br/_5dotSystem/userFiles/EnsaiosCriticos/Turma15/ANTONIO%20SILVA.pdf>. Acesso em: 5 de Nov de 2021.

² TV SUBAÉ. Paralisação de rodoviários deixa parte de Feira de Santana sem transporte público neste sábado. 23/10/2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2021/10/23/paralisacao-de-rodoviarios-deixa-parte-de-feira-de-santana-sem-transporte-publico-neste-sabado.ghtml>. Acesso em: 6 de Nov de 2020.

³ G1 BA. Secretaria de Saúde confirma 2º caso de coronavírus na Bahia; paciente teve contato com 1° caso. 07/03/2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/03/07/secretaria-de-saude-confirma-2o-caso-de-coronavirus-na-bahia-paciente-teve-contato-com-1-caso.ghtml>. Acesso em 5 de Nov de 2021.

⁴ CRUZ, Laiane. Empresas de ônibus propõem reajuste de tarifa para permanecer na cidade e aumentar salário dos trabalhadores. 27/08/2021. Disponível em: <https://www.acordacidade.com.br/noticias/247826/empresas-de-onibus-propoem-reajuste-de-tarifa-para-permanecer-na-cidade-e-aumentar-salario-dos-trabalhadores.html?mobile=true> Acesso em: 6 Nov 2021.

⁵ PELEGI, Alexandre. Feira de Santana, na Bahia, reajusta tarifa do transporte público. 11/01/2020. Disponível em: <https://diariodotransporte.com.br/2020/01/11/feira-de-santana-na-bahia-reajusta-tarifa-do-transporte-publico/>. Acesso em: 6 Nov de 2021.

⁶ TV SUBAÉ. Justiça ordena fim de protesto em garagem de ônibus, em Feira de Santana; moradores dormiram na porta da empresa. 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2021/10/28/justica-ordena-fim-de-protesto-em-garagem-de-onibus-em-feira-de-santana-moradores-dormiram-na-porta-da-empresa.ghtml>. Acesso em 06 de Nov de 2021.

⁷ SECRETARIA DE TRANSPORTE E TRÂNSITO DE FEIRA DE SANTANA. Manifestantes desocupam garagem da Rosa, mas sindicato impede saída dos ônibus. Disponível em: <https://www.feiradesantana.ba.gov.br/servicos.asp?titulo=Manifestantes%20desocupam%20garagem%20da%20Rosa,%20mas%20sindicato%20impede%20sa%EDda%20dos%20%F4nibus%20&id=16&link=secom/noticias.asp&idn=28577#noticias>. Acesso em: 6 de Nov de 2021.

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